Quarta-feira, 28 de Maio de 2008

'Stock' e fluxo: a confusão do costume

Segundo o Banco de Portugal, a dívida das famílias terá atingido no ano passado 129% do seu rendimento disponível, o que legitima o DN a escrever na capa da edição de hoje "Famílias gastam um terço a mais daquilo que ganham", certo? Errado!

Não, não me estou a  referir ao facto de 29 não chegar a ser um terço de 100. Interessa-me antes notar aqui a confusão habitual entre variáveis 'stock' e variáveis 'fluxo', à semelhança do que o Óscar escreveu aqui a respeito de outros assuntos. Os 129% significam que a dívida total das famílias é 1.29 vezes superior ao seu rendimento disponível (ou seja, após impostos) anual. Mas 'dívida' é uma variável de stock, ou seja, é uma acumulação de défices ao longo do tempo. E 'despesa', como o DN refere na capa ("famílias gastam (...)"), é uma variável de fluxo, que ocorre num determinado período de tempo, ou seja, é o 'défice' dum determinado período. E estas duas coisas são obviamente diferentes: uma é a acumulação da outra.

Exemplo: Se eu gasto todos os anos 113 e o meu rendimento disponível anual é de apenas 100, então o meu orçamento terá um défice de 13 que terá de ser financiado com recurso a empréstimo. Se o meu rendimento e a minha despesa se mantiverem constantes e ignorarmos inflação e taxas de juro, ao fim de 10 anos eu terei uma dívida total acumulada de 130 (13 por ano). Vem o Banco de Portugal e diz que a minha dívida total é 130% do meu rendimento disponível, e estará cheio de razão: acumulei uma dívida de 130 e só recebo 100 por ano. E vem logo a seguir o DN e escreve na capa que eu gasto "mais um terço daquilo que ganho", certo? Errado: eu gasto apenas 13% mais daquilo que ganho.

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publicado por Pedro Bom às 10:18
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12 comentários:
De dsm a 28 de Maio de 2008 às 13:17
Acho que o raciocínio do DN é muito, mas mesmo muito mais sofisticado do que isso: se a dívida acumulada de 129% do rendimento o leva (ao DN) a concluir que os portugueses gastam "um terço a mais daquilo que ganham", então, se alguém, ao fim de 5 anos, tiver acumulado uma dívida de 50% do seu rendimento, o DN só pode concluir que esse alguém gasta metade daquilo que ganha (ou mais precisamente, no português luminoso que utilizou: "metade a menos daquilo que ganha")... Ou não é assim?
De Pedro Bom a 28 de Maio de 2008 às 13:49
Sim, de facto, seria mesmo assim. Entretanto alterei os números do exemplo para a comparação com o que o DN disse ser mais imediata.
De Francisco Clamote a 28 de Maio de 2008 às 19:41
Dado que há muito sigo os escritos do blogue, constato que os jornais, em matéria de números, estão a transformar-se em profissionais do erro. Parto do princípio que, a maior parte das vezes, o erro é filho da ignorância, mas nem sempre será o caso.
Julgo que estes casos caiem na alçada da ERC , mas o facto é que nunca a vi pronunciar-se sobre o assunto. Falha minha, por certo.
Permita-me que o felicite, pela informação prestada no seu blogue. Para mim tem sido muito útil e esclarecedora.
Cumprimentos
Francisco Clamote
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Dado que há muito sigo os escritos do blogue, constato que os jornais, em matéria de números, estão a transformar-se em profissionais do erro. Parto do princípio que, a maior parte das vezes, o erro é filho da ignorância, mas nem sempre será o caso. <BR>Julgo que estes casos caiem na alçada da ERC , mas o facto é que nunca a vi pronunciar-se sobre o assunto. Falha minha, por certo. <BR>Permita-me que o felicite, pela informação prestada no seu blogue. Para mim tem sido muito útil e esclarecedora. <BR>Cumprimentos <BR>Francisco Clamote <BR class=incorrect name="incorrect" <a>http</A> :/ terradosespantos.blogspot.com /
De Miguel Carvalho a 29 de Maio de 2008 às 13:06
Pedro, se me permites dois acrescentos

1. Se calhar um bom exemplo para se perceber o que está em causa é pensar nas contas do estado, assunto que os portugueses já conhecem bem. Os 129% são o equivalente à dívida pública (que deve andar à volta dos 60%) e o que "gastamos a mais" será o défice orçamental (que anda nos 2,5%). O DN confundiu um com o outro.

2. Do teu exemplo - que é obviamente o mais simplificado possível - pode transparecer para quem não sabe a distinção stock/fluxo, que há uma relação directa entre os 130 e os 13. Na realidade os 130 não indicam absolutamente nada sobre o "gasto a mais", que pode ser imenso ou até nem existir e haver uma situação de poupança. Por outras palavras os 130 apenas indicam o "gasto a mais" acumulado dos anos anteriores, e nada nos dizem sobre o que está a acontecer neste momento.

Sem ir ver os números eu apostaria claramente na primeira hipótese, ou seja continua a gastar-se mais do que se ganha (mas isto é apenas uma aposta)
De miguel a 30 de Maio de 2008 às 20:45
Por outro lado...isto até nem é assim tão mau.

Outra coisa que nunca se diz, quando se compara a divida com o rendimento disponivel é que sobre a divida só se pagam juros e estes é que se devem comparar com o rendimento.

Inventando uns numeros (não irreais digo eu..) se o custo médio desta divida for de 8%, significa que as familias portuguesas consomem, em média, pouco mais de 10% do seu rendimento com o serviço de divida.
Não me parece muito mau..pensei que fosse pior.

miguel
De Rui Cartaxo a 30 de Maio de 2008 às 22:47
As explicações do Pedro e do Miguel estão tecnicamente correctas e esclarecem o erro (crasso!) do jornal, mas não ajudam a interpretar o que os números revelam.
E o que estes revelam é que, em média, cada português demoraria 1,3 anos a pagar a sua dívida, se consagrasse todo o seu rendimento anual a esse pagamento, e se os seus rendimentos se mantivessem.
130% é muito? É pouco? Bem, o limite que a UE impõe aos Estados-membro é 60%, o que sugere, intuitivamente, que 130% é muitíssimo . Uma reflexão mais aprofundada obrigaria a estudar os activos que existem como "contrapartida" da dívida, isto é, não é a mesma coisa dever 130, por se ter recorrido ao crédito para comprar um apartamento que vale 200, ou para pagar férias no Brasil, jantaradas, etc.
De Miguel Carvalho a 2 de Junho de 2008 às 16:20
Caro Rui,
tem toda a razão quanto ao défice de "interpretação". Mas não é esse de modo nenhum o propósito do blogue. Apenas expor erros crassos que se ouvem e lêem.
Apenas por curiosidade, os 60% da dívida pública são na prática apenas indicativos. Há estados com mais de 100% de dívida pública, tal como há muito países europeus onde as dívidas das famílias ultrapassam os 100%.
O que não nos deve descansar de modo nenhum
De Pedro Braz Teixeira a 2 de Junho de 2008 às 12:41
A comparação que faz sentido é entre stock de passivos e stock de activos das famílias. Este stock de dívida das famílias não será muito preocupante já que 4/5 dele tem como contrapartida uma habitação. A preocupação pode surgir com um crash imobiliário, que já esteve mais longe, com o desemprego e taxas de juro em alta e centenas de milhar de habitações vazias.
O que é preocupante é o stock de divída externa líquida do conjunto do país (simétrico da posição de investimento internacional do BdP), que está numa trajectória explosiva e já ultrapassou os 90% do PIB (4T07).
De Miguel a 3 de Junho de 2008 às 19:13
Julgo que comparar directamente os passivos com os activos não faz muito sentido, porque estes têm naturezas e "rentabilidades" distintas.

No caso da divida, compara-se fluxo com fluxo.
Ou seja, rendimento disponivel com serviço da divida (só juros, porque o resto é investimento).

Fazer paralelismos entre o racio de envididamento dos estado e o PIB e o rendimento das familias vs divida, não é correcto.

o PIB não é um rendimento do "estado" e a divida do estado não é paga do PIB mas sim dos impostos.

Miguel
De Pedro Braz Teixeira a 4 de Junho de 2008 às 10:22
É evidente que faz todo o sentido comparar directamente activos e passivos. Em geral, um passivo surge da compra (alavancada) de um activo. Aliás, o que é o balanço de uma empresa senão a comparação directa entre passivos e activos? Faz todo o sentido fazer Demonstrações de Resultados (fluxos), mas não só faz sentido como é obrigatório fazer balanços (stocks). É aliás uma pena que isto não seja generalizado ao Estado, que só faz conta de fluxos (orçamento) e não faz conta de stocks (balanço). Quando as receitas de privatizações são gastas em despesas correntes a situação líquida do Estado diminui, mas isso não é revelado na contabilidade.

Quanto à segunda parte (um pouco confusa na escrita, lamento), eu não falei em dívida pública mas em dívida externa líquida (tive o cuidado de dar a definição precisa, para poder confirmar no BdP). A dívida externa é do Estado, das empresas e dos particulares. Por isso faz todo o sentido comparar com o PIB.
Quanto a não se poder comparar dívida pública com PIB, o seu argumento não colhe. Em primeiro lugar, o PIB é obviamente uma proxy da capacidade de uma economia em pagar impostos. Em segundo lugar, esta comparação faz tanto sentido que é usado o valor de 60% como limite de dívida pública recomendado no Pacto de Estabilidade e Crescimento.
De Anónimo a 5 de Junho de 2008 às 01:12
Boa Noite,

Julgo que não faz sentido uma discussão teórica sobre a validade de comparar activos com passivos para aferir a saúde financeira das familias (o tema inicial) ou de outra entidade qualquer.

Gostaria apenas que me mostrasse uma avaliação de uma empresa que se baseie na análise do balanço (stocks). Os que eu leio diariamente utilizam sempre demonstrações de resultados (fluxos). As alterações nos stocks, reflectem-se e são avaliadas nos fluxos.

Sendo assim, não vejo porque deverá ser diferente o critério para as familias.
O que é relevante é se existe, ou não capacidade, para o serviço da dívida.

A segunda parte, não era uma resposta ao seu post, mas sim a um comentário anterior, que comparava os critérios do PEC (divida pública inferior a 60% do PIB) com os critérios para as familias (divida vs rendimento disponivel).
Salientei que a comparação entre o PIB (não é um rendimento do estado) e o rendimento disponivel nas familias, era errada.

Para terminar (relativamente ao ultimo comentario), de facto o meu texto estava confuso. Pode comparar o PIB com a divida pública. Concordo que o PIB pode ser um proxy da capacidade para pagar impostos.
Contudo, o único objectivo era explicar o ponto anterior: o PIB não é um rendimento do estado, não pode ser comparado com o rendimento das familias
O que se pode comparar com o rendimento das familias são os impostos.

Miguel
De Ari Almeida a 16 de Junho de 2008 às 23:01
É verdade que na capa do jornal está incorrectamente escrito. O que não acontece no texto no interior, aliás muito bem explicado e tal como lá se diz, significa que as dividas dos portugueses à banca ultrapassam em 30% o rendimento liquido anual (salários, descontado impostos e contribuições). Tão simples quanto isto, não é necessário andar com todas essas definições que os senhores apresentam...

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