O DN adora fazer capas onde aparecem notícias sobre o consumo. E, quase invariavelmente, sai asneira. Na de hoje, lê-se o seguinte: "Portugueses compram presentes mais baratos". Os dados referem-se a pagamentos por multibanco, são da Sibs, e são fornecidos logo no início do texto: "os portugueses estão a aumentar ligeiramente o número de operações de compra, mas a despesa é igual". Ou seja, em relação ao mesmo período do ano passado, este ano há mais pagamentos por multibanco, embora o montante total transaccionado seja sensivelmente o mesmo.
O que é que conclui a Paula Cordeiro? Primeiro, que "a crise está a travar os ímpetos consumistas dos portugueses", desmentindo-se a ela própria logo a seguir quando escreve "os portugueses estão a comprar o mesmo". E, segundo, que os portugueses estão a "gastar menos em cada aquisição" (ou, como na capa, "portugueses compram presentes mais baratos").
A primeira contradição é desfeita pela própria jornalista, não necessita de mais comentários. A segunda conclusão não é necessariamente verdade. Por várias razões. Primeiro, nem tudo o que é comprado por recurso ao multibanco é "presente". Portanto, querer fazer das compras da época natalícia compras de natal é, só por si, falacioso. Segundo, o número de pagamentos não é igual ao número de "aquisições" nem ao número de presentes. Como é que a Paula Cordeiro sabe quantos produtos estão a ser comprados em cada pagamento? Se forem comprados menos produtos por cada pagamento, então podem estar a ser comprados produtos mais caros com a mesma despesa total (ou menor). Terceiro, os portugueses podem perfeitamente estar a usar o multibanco mais frequentemente, gastando a mesma despesa sem necessariamente comprar "presentes" mais baratos.
Portanto, aquela conclusão não passa de pura especulação. E pura especulação, quando revestida de ar de verdade irrefutável, não devia aparecer em capas de jornais.
O jornal é o DN e o jornalista é o incontornável Rudolfo Rebêlo. Eis o que me veio à rede no artigo de hoje:
1. "Pelo terceiro ano consecutivo os portugueses perderam poder de compra em 2007".
Custa assim tanto deixar claro que esta perda é relativa ao resto da União Europeia? Sobre isto, já tudo foi dito aqui.
2. "Portugal é um dos países da Europa mais caros para viver, ocupando o 18º lugar no ranking das nações com os preços mais elevados, entre uma lista de 37 países".
Primeiro, é dos mais caros, mas ocupa a 18ª posição em 37 países. É o que se chama um "pódio de 18 lugares"... Ainda por cima o nível de preços em Portugal até está bastante abaixo da média europeia. Segundo, porque é que o Rudolfo não comparou apenas com os países da zona euro, como fez com o "poder de compra"?! Nesse caso seria o 3º mais barato. Mais barato só mesmo Malta e Eslovénia.
3. "Há três anos que Portugal mantém o nível de preços da alimentação (e serviços) face à média da UE 27".
Ah, agora o Rudolfo já fala em termos relativos! Está a melhorar, sem dúvida. Mas interrogamo-nos se o teria feito caso o nível de preços tivesse subido em relação à média europeia, como o não fez com o poder de compra. E, "alimentação"? Então e um pneu? E um sofá? E uns sapatos? Não são alimentos, não são serviços, são o quê?
4. "Ou seja, medido com base nos gastos efectuados pelas famílias em bens e serviços (consumo), o poder de compra é apenas 82% da média da União Europeia a 27".
Mas que sentido é que faz medir o "poder de compra" usando o consumo privado? Se um japonês me emprestar dinheiro para importar um carro do Japão, o meu consumo aumenta, mas quer isso dizer que tenho mais poder de compra? E se eu decidir não gastar parte do meu salário para emprestar a um mexicano, quer isso dizer que perdi poder de compra?
5. "Apesar de os preços nas lojas e nos serviços estarem 43% acima da média da União - o que significa uma carestia de cerca de 60% superior a Portugal -, o poder de compra dos dinamarqueses está 12% acima da média da UE 27".
Com que então, 60%... O Rudolfo pega nos níveis de preços dinamarquês (143) e português (84), tira a diferença e (sem dividir pelo nível de preços português) chama-lhe percentagem. Claro que a percentagem correcta é perto de 70%, não 60%. Mas o mais curioso é termos lido, há uns tempos, um comentário refilão do próprio Rudolfo a vangloriar-se de não padecer dessa maleita tão comum entre jornalistas que é não saber calcular percentagens. Cá temos a prova.
Além disso, como escrevi no ponto 4, os 12% de que nos fala referem-se ao diferencial relativo do consumo e, portanto, não fazem sentido enquanto diferença de poder de compra. Lá por os dinamarqueses pouparem uma grande parte do que produzem, isso não significa que perdem poder de compra.
6. "O poder de compra no Grão-Ducado do Luxemburgo estava (em 2007) cerca de 47% acima da média e, mesmo assim, estão mais "pobres"".
Pois claro, tinham um rendimento real 154% superior à média europeia em 2005, e 167% em 2006 e 2007, e o Rudolfo ainda nos quer convencer que ficaram mais pobres...
...ainda não percebeu que as fracas perspectivas de evolução da conjuntura económica não o legitimam a lançar para o ar todo o tipo de disparates. Há meses que vem tentando convencer os leitores que tanto o consumo como o investimento têm vindo a cair em Portugal, embora os dados que utiliza para o sustentar digam exactamente o contrário (como já foi tratado aqui, aqui e aqui). Hoje voltou à carga: "Portugal vai andar ao ralenti até 2009, diz o Fundo Monetário Internacional (FMI). Vergadas pelo peso das dívidas à banca, as famílias e as empresas reduzem o consumo e o investimento". Mas o que os dados do FMI nos dizem é que o consumo privado crescerá 1 por cento em 2008 e 0.9 em 2009, e o investimento 1.6 por cento em 2008 e 2.5 em 2009. Onde é que estão as reduções?
O Banco de Portugal (BP) e o INE vieram ontem com novos dados da conjuntura económica e, como já seria de esperar, o DN e o seu jornalista de serviço, Rudolfo Rebêlo, lá tratam de disparatar sobre eles. Vou tentar ser claro, para que a caixa de comentários não fique entulhada de observações anónimas ainda mais absurdas do que as da própria notícia.
1. Actividade Económica. No título da notícia e ao longo do texto o Rudolfo tem o cuidado de referir (e bem) que a economia está a "arrefecer" ou a "desacelerar", em vez de "decrescer". Isto é verdade: o indicador coincidente do BP aponta para um crescimento homólogo positivo em Maio (0.4%), mais baixo do que o de Abril (0.8%). Mas, tendo o nível de actividade económica sido, em Maio último, superior ao de Maio do ano passado (em 0.4%), porque raio diz o Rudolfo que "a actividade económica [está] ao nível mais baixo desde 2003"?
2. Consumo. Mesmíssima coisa, mas agora o Rudolfo consegue contradizer-se na mesma frase: "o consumo das famílias terá aumentado 0,5% em Maio, face ao mesmo mês do ano passado, mas está a decrescer ao longo dos últimos meses, atingindo o valor mais baixo desde Setembro de 2003". Então mas, cresceu 0.5% em relação a Maio do ano passado e é o mais baixo desde 2003? Será que o Rudolfo não consegue arranjar um mês desde 2003 em que o consumo tenha sido menor? Dou uma sugestão: que tal Maio do ano passado?
3. Investimento. "Investimento aumentou em Abril", diz o Rudolfo, embora não refira quanto e onde foi buscar a informação. O que o INE diz é que a variação percentual homóloga do investimento foi -1.9% em Março e -0,5% em Abril. Ou seja, o investimento desceu em ambos os meses, em relação aos meses homólogos de 2007, embora menos em Abril. Se o Rudolfo diz que subiu em Abril porque -0.5% é maior do que -1,9%, então estamos em presença do disparate do costume, porque ambas as variações são negativas. [Claro, em relação a Março o investimento até pode ter subido, mas não só isto não é uma implicação lógica dos números do INE como nem as variações mensais são para aqui chamadas.]
A frequência com que Rudolfo Rebêlo, jornalista do DN, repete, semana após semana, os mesmos disparates nos seus artigos (supostamente) económicos começa a ser muito preocupante. O festival de hoje começa com as contradições do costume:
1. Primeiro lê-se: "Economia portuguesa deverá crescer 1,6% em 2008, com as famílias a reduzirem o consumo de bens". Depois lê-se: " Este ano, o consumo cresce apenas 1,4%". Em que ficamos, caro Rudolfo? Eu sei que ficamos na segunda, porque entretanto fui ver ao relatório, mas será suposto cada um dos leitores ir ao relatório da OCDE tirar as dúvidas que tu próprio crias?
2. Primeiro lê-se: "Portugal vai empobrecer ainda mais". Depois lê-se: "a economia portuguesa cresce 1,6% este ano". Então Rudolfo, "empobrecer"? Estamos 1.6% mais ricos e tu falas em empobrecimento. Sem dúvida, 1.6 pode ser pouco, nada, quase nada, razão para protestos em São Bento, para eleições antecipadas, para golpe de Estado, para fugirmos para o Brasil, para nos entregarmos à bebida, etc. Agora, "empobrecer" é... estúpido.
Depois ainda há mais alguns:
3. "O desemprego afectará quase 8% dos portugueses, o que ajuda a explicar uma travagem nas despesas com as compras". Primeiro, afectará 8% dos "portugueses"? A minha tia Conceição, 82 primaveras, também conta? E o meu primo Francisco, que acabou de entrar para a primária, também? Segundo, não, não ajuda a explicar coisa nenhuma. Apesar de alto, muito alto, está a descer. Devagarinho, muito devagarinho, mas está a descer (8% em 2007 e 7.9% em 2008, segundo a OCDE). Se me dissesses "desemprego alto explica consumo baixo", ainda aceitava. Agora, "desemprego alto explica desaceleração do consumo" já não pega. E, claro, "desemprego a cair (ainda que umas migalhitas) explica desaceleração do consumo", esta nem a minha tia Conceição engolia.
4. "Portugal consome mais do que produz". Isto é obviamente falso. O que é superior à produção é a despesa total, incluindo investimento. O que torna a balança fortemente deficitária e obriga a endividamento externo, pois claro.
Uma vez por mês, o Banco de Portugal (BP) revela informação "qualitativa" sobre o andamento da economia, que sintetiza no que chama "indicadores coincidentes". Uma vez por mês, pelo menos um órgão de comunicação social escreve disparates sobre essa informação. Felizmente, é só uma vez por mês, porque doutra forma não havia pente-fino que resistisse. Vejamos:
Capa do DN: "Consumo das famílias é o mais baixo desde 2003". No interior: "Consumo ao nível mais baixo em 5 anos". E, logo de seguida, para deixar claro que não se trata de meras simplificações de título: "O consumo das famílias caiu em Abril, pelo nono mês consecutivo, atingindo o valor mais baixo em cinco anos, (...) de acordo com os indicadores ontem divulgados pelo Banco de Portugal." Vou aos Indicadores da Conjuntura do BP, publicados ontem, e confirmo: o indicador coincidente do consumo privado (e não "consumo privado", porque para este ainda não há dados) em Abril passado é, de facto, não só negativo mas também o mais baixo desde 2003. E confirmo também o seguinte: lamentavelmente, o jornalista do DN que escreveu este artigo não faz a mínima ideia do que isto significa.
Como já escrevi aqui e aqui, o indicador vem na forma de taxa de variação homóloga. Ter registado o nível mais baixo desde 2003 significa que o crescimento (e não o nível!) do consumo privado foi o mais baixo desde 2003 (aliás, dado que foi negativo, o nível de consumo terá mesmo sido em Abril de 2008 menor do que em Abril de 2007). Só que, desde 2003 até o mês passado, o indicador coincidente foi sempre positivo (com uma provável excepção algures em 2005), pelo que o consumo privado esteve (quase) sempre a crescer.
Para ficar bem claro que o DN não sabe do que fala, temos ainda no parágrafo seguinte: "(...) a actividade económica abrandou, registando o pior valor dos últimos dois anos (Abril 2006)". Mais uma vez, o mesmo disparate, mas agora em relação à actividade económica. No entanto, com a notável agravante de o indicador coincidente da actividade económica ter sido sempre positivo desde 2006! Ou seja, segundo o indicador coincidente do BP, a actividade económica tem melhorado continuamente desde 2006, o que faz de Abril último o... melhor mês desde 2006. Dirão vocês que pode ser o caso do DN não saber a diferença entre "pior" e "melhor". Pois, é verdade, mas eu cá prefiro acreditar que não sabem antes interpretar os dados do BP...
Não perca a continuação deste episódio dentro de um mês.
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